Um banho nas aflições
Eu tenho um sonho recorrente (ou seria um pesadelo?) de que me atraso para pegar um voo. Na verdade, passo o sonho inteiro com a sensação de que não vou conseguir chegar antes de o avião sair, mas nunca chego a um desfecho, nunca se materializa o fato que me assusta: o de perder um voo.
O sonho em si é muito angustiante e um tanto nebuloso. Eu nunca sei exatamente o que está me impedindo de chegar até o portão e embarcar naquela aeronave. Já teve um pouco de tudo (como possíveis causas, nunca claras): não encontrar as malas, ter dúvidas sobre o dia do voo, atraso para sair de casa a tempo de chegar no aeroporto, não encontrar o portão de embarque mesmo estando há horas no terminal certo. O que é comum nesses sonhos é a impressão de que não vou conseguir chegar a tempo. Esse é o motivo do meu sofrimento. O fato que causa a angústia, porém, nunca se concretiza. Eu nunca me vejo, no sonho, perdendo o voo. Fico no medo.
Comecei esse post umas mil vezes. Eu concretizei nele um medo: atrasei em uma semana o envio desta newsletter. Acontece que eu estava viajando e me esqueci completamente que segunda passada era meu prazo (que eu mesma me dei) para enviar essa correspondência por e-mail para vocês, queridos leitores. Peço desculpas porque não gosto de me comprometer e não cumprir. Mas eu costumo me atrasar muito, muito mais do que eu gostaria.
Eu vivo sempre “no laço”, sendo meio “atrasadora de jornal", como se diz nas redações de jornal. Tendo a deixar tudo para última hora, mesmo quando eu começo com antecedência, fico “penteando o texto”. De uns tempos para cá tenho melhorado isso, tenho saído do modo “fechamento de jornal”, mas eu sofro e sigo com medo de perder um avião. Esse sonho se repetiu, aliás, no domingo.
Apesar desse medo, eu sempre consegui chegar a tempo para pegar os meus voos (exceto um que eu entendi que era programado para 13h e, na verdade, era 1h - mas não conto como tentativa de ir pegar porque eu nem sabia que o voo sairia naquele horário). Eu também nunca deixei de entregar minhas matérias antes de o jornal fechar. Mas eu sigo com medo do atraso.
Quando eu me sinto angustiada com a lista de tarefas caindo na minha cabeça, eu recorro à água. Eu lavo as mágoas, os medos, as angústias. Água me acalma. Tomo um longo banho para tentar organizar os pensamentos. Gosto de nadar, de mergulhar, de sentir meu corpo imerso em muita água. Quando morava em Brasília tentava sempre que possível fugir para o Parque Nacional de Brasília (popularmente conhecido como Água Mineral, que ilustra essa newsletter). Quando nada disso é possível, às vezes eu lavo nas lágrimas a frustração. E uma das coisas que eu mais odiava na infância era quando eu era impedida de chorar. Levanta a mão aí quem cresceu nos anos 1980/1990 e ouviu da mãe: Engole esse choro! Espero que hoje tenham parado de mandar as crianças engolirem o choro. Chorar é bom demais para lavar algumas angústias. E esse é o tema de um texto que escrevi para outra oficina de escrita. Por favor, não engulam mais os choros. Vamos de mantra de choro.
Mantra I
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Engole o choro.
Sal se acumula.
Mantra II
Sal acumulado dentro da gente azeda.
Azedume é coisa de gente amargurada, de raiva engolida.
A raiva não é só minha.
Engoli raiva de todas que vieram antes de mim.
Engoli e engulo a raiva de todas que ainda estamos aqui.
Nos dão azedume e querem receber açúcar.
Esqueceram de instalar em nós uma máquina de converter sabores e sentimentos.
Ninguém dá o que não tem.
Vão pro diabo quando me pedem para deixar de ser raivosa. Vou cuspir essa raiva.
A obediência é uma doença de pele. Li isso no livro novo da Elena Ferrante.
Esse será meu mantra a partir de agora.
O que estou lendo/ouvindo
Terminei de ler a entrevista de Ursula K. Le Guin para o David Naimon. Espetacular!
Comecei a ler O Caderno Proibido, de Alba de Céspedes. Já tinha ouvido falar bastante, mas depois de ouvir esse episódio do Posfácio, me convenci.
Por falar em choro, está na minha lista o livro Aos Prantos no Mercado, de Michelle Zauner. Para quem quiser, tem resenha da Sarah aqui.
Moro no hemisfério norte e aqui já tá frio, ainda que o inverno não tenha começado. Ganhei um quentinho no coração ao encontrar a querida escritora Calila das Mercês, que acabou de lançar o maravilhoso Planta Oração. Ganhei dela o livro, que tive a sorte de acompanhar um pouco o processo de escrita, durante oficinas que fizemos juntas. Ele está do lado da minha cama e vou comentá-lo aqui em breve. O trabalho da Calila é imperdível!
Estou considerando começar a publicar toda semana esta newsletter a partir do ano que vem. Me contem o que vocês querem ler mais aqui em 2023. Podem mandar sugestões para talitafj@gmail.com.
Obrigada e bom dezembro!
Talita