#2 Textos para ler de ponta cabeça
Experimentos de escrita numa tentativa de achar minha própria voz-narrativa
Eu não sabia exatamente sobre o que escrever nesta segunda edição. Estava quase decidida que seria sobre o tempo. Mas esta recém-criada newsletter nada mais é do que um exercício para eu tentar achar a minha voz: voz-narrativa, voz de escritora. Voz de jornalista que passou anos pegando emprestadas as vozes alheias para construir um texto. Eu não quero criar muitas regras sobre o que vou fazer neste espaço, mas busco ter uma voz narrativa como singularidade do que será este espaço experimental.
Em 2019 comecei a fazer oficinas de escrita criativa. Inicialmente a ideia era tentar melhorar o texto depois de reiteradas queixas de um ex-chefe. Tem mais de dois anos que eu sai do meu emprego e nunca mais parei de fazer oficinas. Não tinha publicado nada antes deste experimento em forma de carta/e-mail que vocês gentilmente toparam receber. Fiz uma oficina presencial com Marcelino Freire. Foram seis inesquecíveis encontros em que encontrei muita gente boa, vozes que eu queria ouvir.
De lá para cá eu fiz várias outras oficinas: umas curtas, outras mais longas, todas online porque desde então me mudei do Brasil. Para algumas delas eu acordava às 6h em Pequim para acompanhar o fuso brasileiro. Me angustia(va) a dificuldade em achar minha voz na escrita. Eu brincava com Marcelino que não sabia mentir, então não tinha como fazer ficção. Já a Leila, outra professora e amiga, me dizia que os fatos não precisavam ser verdeiros, mas os sentimentos, sim. Uma das coisas que mais gostei de fazer nas oficinas são exercícios de memória da infância: listas, descrição de objetos, lugares e cenas. Talvez seja assim que eu consiga melhor ouvir a voz a minha voz.
Além de cursos de escrita, tenho outros sobre processo criativo. Recomendo o da Aline Valek (autora da newsletter Uma Palavra). Este fim de semana, participei do evento O Texto e o Tempo, com vários ótimos escritores, entre eles, a Aline. Na oficina, ela falou sobre a importância de reler, reescrever e ouvir em voz alta o próprio texto. As oficinas me fizeram perceber que o problema do meu texto (daquele que meu chefe reclamava) era falta de releitura, falta de tempo, não de saber escrever exatamente. No jornalismo em que eu trabalhava me faltava tempo para reler com calma. Agora que estou fazendo colaborações pontuais para alguns veículos eu brinco que gosto de deixar o texto dormir e acordar no dia seguinte, passar um bom balde de café e rele-lo nom eu tempo. Escrever se tornou mais prazeroso, menos custoso.
O evento deste fim de semana me fez mudar de ideia sobre o que trazer aqui - deixo a reflexão da Ana Rusche, sobre se newsletter é também literatura. Peguei um texto que escrevi no começo do ano para a oficina da querida Leila de Souza Teixeira (que acabou de publicar Se eu não posso ser quem sou). Era um exercício para descrever a casa da infância. Eu reli, repensei e misturei com um outro experimento que publiquei no meu instagram (onde eu dava vazão pro meu desejo de escrever até tomar coragem de inaugurar uma newsletter toda minha).
O texto para oficina eu misturei com a publicação da minha rede social no fim de 2019, poucos meses depois da partida do meu pai. Ele é minha parte criativa, minha conexão com a arte, e quando ele saiu deste plano eu senti que era hora de mante-lo vivo expressando e contando que sim, também posso ser criativa como ele foi. Meu pai nunca carregou “artista” como ofício. Mas ele era: um homem que transformou uma garagem em casa, primeiro para duas pessoas, depois para cinco. Meu pai resolvia boa parte das minhas necessidades/desejos com sua criatividade. Quando eu estava estudando para o vestibular, queria uma escrivaninha e uma luminária. Ele transformou um chuveiro velho numa luminária. Eu era adolescente e queria um mural para colocar fotos com ímã. Ele achou uma placa metálica abandonada na rua. Limpou, cortou, pintou e emodurou e esse mural me acompanhou até Floripa, onde fui fazer faculdade, depois voltou para casa onde hoje minha mãe mora, em Herculândia. Nos últimos anos de vida eu notei que a criatividade do meu pai estava indo embora. Ele estava morrendo, sem ser artista e criativo não achou muito espaço/desejo para viver. Pai, este texto é uma ode à sua mente criativa, às suas mãos habilidosas.
A casa à qual pertenço, mas já não caibo
Tudo começou com uma garagem. Com algumas adaptações, meu pai transformou em uma casa para dois. A entrada da rua era a mesma da casa da vó Dina. Mas um corredor com uma rampa e uns poucos degraus separavam as duas famílias. A porta pequena de latão pintada de marrom dava de cara para a pia de metal, pequena, e com armários de compensado de madeira clara em cima e numa das laterais. Do lado direito tinha um fogão branco esmaltado de quatro bocas - que até hoje está na casa da minha mãe, ela se nega a comprar outro, insistindo que as coisas de hoje duram menos. Naquele mesmo fogão, eu, minha irmã, a Nessinha e a Jaizane tivemos as mãos queimadas. Uma a uma, todas copiaram o gesto da primeira, a Nessinha, que encostou a palma da mão na boca quente e, sem falar nada, chachoalhou a mão dolorida despertando nas outras três graça, curiosidade e a ingenuidade em fazer o mesmo.
A mesa ficava em frente ao fogão e tinha quatro lugares. As cadeiras de palha trançada no espaldar e no assento eram um bom brinquedo. Eu adorava sentir a sensação dos meus dedinhos pressionados. A mesa era coberta por uma toalha, onde já executei planos infalíveis como o de deixar um bilhetinho de despedida para minha mãe, anunciando que eu iria embora, mas que eu esperava ela ler enquanto eu me escondia embaixo da mesa. No canto, colado à parede, ficava o rádio. Com o tempo, o aparelho ganhou um suporte quase no mesmo lugar, um pouco mais para cima, facilitando quando a gente queria comer e ao mesmo tempo ouvir as fitas K7 da casa. Era mais uma das invenções do nosso pai, que meu irmão apelidaria uns anos depois de "arruma arruma".
A marca registrada lá de casa eram as toalhinhas colocadas sempre em cima dos móveis com biquinhos de crochê feitos pela minha mãe, minha vó ou pela minha madrinha. Coisa de gente que saiu da roça e mudou para cidade, mas não perdeu o hábito de proteger os móveis da poeira.
No cantinho do lado da geladeira tinha um portal que dava para a porta de madeira pintada de marrom escuro do banheiro. Do lado direito, um corredorzinho espremido fazia as vezes de lavanderia, mas era também o canto em que éramos colocadas de castigo e de onde eu implorava para ser liberada, o que só irritava ainda mais minha mãe. Aquele era o espaço mais bem aproveitado: era ainda o depósito de malas e de tudo que não usávamos no dia a dia graças a uma prateleira que meu pai improvisou lá em cima. O banheiro tinha um cheiro ruim de esgoto. Era um corredorzinho apertado e comprido com um box de plástico fumê marcado com ranhuras. Os azulejos eram branquinhos com uns pontos pretos, pareciam formiguinhas. Eu contava elas no banho. O armarinho do banheiro foi pintado de marrom, ornava com a porta.
O quarto era o que mais lembrava o formato de garagem, talvez porque nele coubesse um carro com quase nenhum espaço para os passageiros saírem se abrissem as portas. No chão tinha um carpete azul marinho. Primeiro era só a cama dos meus pais, com um baú na cabeceira onde o rádio relógio - sempre 15 minutos adiantado como tentativa em vão da minha mãe de não se atrasar.
Eu ocupei um berço de madeira que antes foi dos meus primos. Quando minha irmã chegou ele estava velho demais e foi embora, veio outra cama e um novo berço, dobrável, já que a gente precisava removê-lo para conseguir acessar o armário. Aquele era o cenário favorito das fotos lá de casa, em especial com o fundo de uma penteadeira sufocada que consistia num espelho meio manchado refletindo a luz da rua, ou do flash da câmera.
Ao lado do guarda-roupa ficavam as cômodas, tudo madeira compensada clara. Primeiro era uma, depois meu pai empilhou outra para dar conta de guardar tudo, inclusive as coisas do bebê que tinha chegado. Por último, em cima da cama, ao lado das cômodas, tinha um suporte de televisão, que com o tempo ganhou um anexo para o videocassete. A última coisa que entrou ali talvez tenha sido uma estantezinha de madeira baixa, na altura da cama de baixo da beliche, para onde foi o som moderno som da Gradiente, comprado a prazo no Mappin. Pela primeira vez tinha disco, fita cassete e CD player.
A última vez que visitei este endereço foi no Natal de 2019, o último que passei no Brasil. Eu andava obcecada com um texto da Clarice Lispector que amo e que uma amiga tinha me apresentado meses antes:
“Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça. Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus. Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.”
Fiquei olhando ali cheia de saudade e pensando como coubemos os cinco naquele lugar. Tenho a impressão de que vivíamos tão juntos e com tão pouco espaço que custou a entender quem era quem.
Quando olhei para a fachada e a foto, só pensava no meu pai, e assim sigo pensando. O improviso dos móveis suspensos era obra da mente criativa dele. Ele que achava estabilidade no caos, que se acostumou a viver em travessia, em transformação, em mudança constante. Ele precisou partir para eu sentir tudo capenga, móvel, mutável para entender e (tentar) aceitar que dá para pertencer ao caos, ao não fixo, dá para pertencer à travessia.
Coisas para ler/ouvir
Referências sobre busca de voz:
Tenho viajado com teus textos. Eles me trazem pra dentro de mim, me levam a experiências passadas e me dão vontade de escrever também. Mas ainda tô retraída. Meio incubadora de ideias.
"Eu brincava com Marcelino que não sabia mentir, então não tinha como fazer ficção." < Meu deus, eu me identifiquei tanto com isso! Mal da formação em jornalismo, será?
Prazer imenso em conhecer mais sobre você, sobre seu pai, e em ler seu texto. "dá para pertencer ao caos, ao não fixo, dá para pertencer à travessia" vai ficar comigo <3